Estou além

PALAVRAS COM ALMA

Não consigo dominarEste estado de ansiedadeA pressa de chegarP'ra não chegar tarde
Não sei de que é que eu fujoSerá desta solidãoMas porque é que eu recusoQuem quer dar-me a mão
Vou continuar a procurarA quem eu me quero darPorque até aqui eu só:Quero quem, quem eu nunca viPorque eu só quero quemQuem não conheciPorque eu só quero quemQuem eu nunca viPorque eu só quero quemQuem não conheciPorque eu só quero quemQuem eu nunca vi
Esta insatisfaçãoNão consigo compreenderSempre esta sensaçãoQue estou a perder
Tenho pressa de sairQuero sentir ao chegarVontade de partirP'ra outro lugar
Vou continuar a procurarA minha formaO meu lugarPorque até aqui eu só:Estou bem aonde eu não estouPorque eu só quero irAonde eu não vouPorque eu só estou bemAonde eu não estouPorque eu só quero irAonde eu não vouPorque eu só estou bemAonde não estouEstou bem aonde eu não estouPorque eu só quero irAonde eu não vouPorque eu só estou bemAonde eu não estouPorque eu só quero irAonde eu não vouPorque eu só estou bemAonde eu não estouPorque eu só quero irAonde eu não vouPorque eu só estou bemAonde não estouPorque eu só quero irAonde eu não vouPorque eu só estou bemAonde não estou

António Variações (1944-1984)

Acordar, Viver

PALAVRAS COM ALMA
Como acordar sem sofrimento?
Recomeçar sem horror?
O sono transportou-me
àquele reino onde não existe vida
e eu quedo inerte sem paixão.

Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,
a fábula inconclusa,
suportar a semelhança das coisas ásperas
de amanhã com as coisas ásperas de hoje?

Como proteger-me das feridas
que rasga em mim o acontecimento,
qualquer acontecimento
que lembra a Terra e sua púrpura
demente?
E mais aquela ferida que me inflijo
a cada hora, algoz
do inocente que não sou?

Ninguém responde, a vida é pétrea.

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)