Campo de flores

PALAVRAS COM ALMA
Deus me deu um amor no tempo de madureza,
quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.
Deus - ou foi talvez o Diabo - deu-me este amor maduro,
e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.

Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos
e outros acrescento aos que amor já criou.
Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso
e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou.


Mas sou cada vez mais, eu que não me sabia
e cansado de mim julgava que era o mundo
um vácuo atormentado, um sistema de erros.
Amanhecem de novo as antigas manhãs
que não vivi jamais, pois jamais me sorriram.

Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra
imensa e contraída como letra no muro
e só hoje presente.
Deus me deu um amor porque o mereci.
De tantos que já tive ou tiveram em mim,
o sumo se espremeu para fazer vinho
ou foi sangue, talvez, que se armou em coágulo.

E o tempo que levou uma rosa indecisa
a tirar sua cor dessas chamas extintas
era o tempo mais justo. Era tempo de terra.
Onde não há jardim, as flores nascem de um
secreto investimento em formas improváveis.

Hoje tenho um amor e me faço espaçoso
para arrecadar as alfaias de muitos
amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes,
e ao vê-los amorosos e transidos em torno,
o sagrado terror converto em jubilação.

Seu grão de angústia amor já me oferece
na mão esquerda. Enquanto a outra acaricia
os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura
e o mistério que além faz os seres preciosos
à visão extasiada.

Mas, porque me tocou um amor crepuscular,
há que amar diferente. De uma grave paciência
ladrilhar minhas mãos. E talvez a ironia
tenha dilacerado a melhor doação.
Há que amar e calar.
Para fora do tempo arrasto meus despojos
e estou vivo na luz que baixa e me confunde.

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

Semear “Sonhos na Palma da Mão” para colher liberdade

ANÁLISE LITERÁRIA - Infantil
“No sonho, a liberdade..." - é a porta de entrada deste livro. Uma porta sem fechadura, através da qual todos podem passar. Pequenos, graúdos. Na capacidade de sonhar mora a grandeza da vida. No sonho não há amarras, castrações, limites. No sonho, apenas a liberdade. É este o sentido que dá cor a esta obra de Luísa Dacosta.
"Estes 'Sonhos na Palma da Mão' pagam, de certa maneira, o encanto que me deram 'A Rapariga dos Fósforos', 'A Sereiazinha', 'O Patinho Feio', 'O Rouxinol' [Andersen]" – justifica a autora. E, porque encanto com encanto se paga, eis um livro doce, terno e impregnado de magia.
O ponto de partida para o sonho é aqui um pequeno pássaro, talvez um rouxinol... que "no seu ninho passou a chocar os sonhos da menina". É a imaginação dessa menina que lhe dá alma e juntos viajam; percorrem histórias possíveis (ou impossíveis); histórias vestidas por personagens sem nome.
A menina que a autora tomou como protagonista é, tão-somente, uma menina, uma criança como tantas outras que na palma da mão têm poisados sonhos, muitos sonhos.
Finaliza a autora: "Como o abrir e o fechar de um leque, assim se abriam e fechavam os sonhos da menina com aquele passarinho do quarto da avó - até que ela se cansou e abandonou ao mistério da sua grácil fragilidade..."
"Sonhos na Palma da Mão", editado pela ASA, integra a colecção "Obras Completas de Luísa Dacosta para a Infância". As ilustrações são de Cristina Valadas. Está à venda por 8 euros. É um livro recomendado pelo Plano Nacional de Leitura para o 4º ano de escolaridade destinado a leitura orientada na sala de aula.

A AUTORA
Ficcionista, cronista e poetisa com mais de duas dezenas de títulos publicados, Luísa Dacosta nasceu em 1927, em Vila Real, tendo-se formado na Faculdade de Letras de Lisboa, em Histórico-Filosóficas. Já distinguida pela Secção Portuguesa do IBBY (International Board on Books for Young People), que a escolheu como candidata portuguesa ao Prémio Han Christian Andersen - uma espécie de Nobel da literatura infantil.

Ubi Veritas

ALGUMA INSPIRAÇÃO
Na linguagem cifrada do vento
descubro uma metáfora amarelo sol
um estranho e onírico sopro
num feixe de arco-íris eterno

Espreitam olhos de maldade
escondem brinquedos de fingida simpatia,
mas as recordações filtram o passado
e servem o equilíbrio instável do presente

Linda boneca de tez rosada
deita-se no perfume do tempo
que constrói transparentes certezas
num mar urgente de cetim

Quero olhar a história
matar a vergonha consentida
e ver-te brincar na memória
retocada por desejos fortuitos

Ao olhar-te adormeço para a eternidade
e sorrio


Salomé Castro in Ubi Veritas

Meu tormento

PALAVRAS COM ALMA
Mais do que tu pensas
Enlouquecendo de amor,
Uno a tua imagem às folhas densas.

Tudo passa neste mundo,
Oiço o som da saudade
Retorcendo lá pelo fundo.
Moro longe da felicidade,
Enamoro-me das tuas belezas,
Na dor eu vivo
Tudo para mim são incertezas,
O amor de um ser cativo.

Orlando Castro in Algemas da Minha Traição (1975)