Ubi Veritas

ALGUMA INSPIRAÇÃO
O vento sopra voraz. Os gigantes movem-se cadenciados. Sensação submersa em mar de angústias. Medo? Portentosos moinhos rodam suas pás. Adversários do cavaleiro andante. Ufanista, obstinado e louco. Loucura sã... heroísmo e candura. Estranho, solitário e vencido. Culpados, os gigantes do sistema. Patriotismo desmedido, perda da razão. Visionário que luta, que se ergue como um vulto na berma da estrada... quieto, sentado, incerto. Todos o conhecem. Todos o têm. Todos o sentem. Poucos o consentem. Puro medo: eu? Cavaleiro que luta contra moinhos de vento. Obstinado que persegue a vontade partilhada. A seu lado o fiel escudeiro, a realidade. O bom senso teima em não vir à tona. Gigantes modernos ditam uma mesma verdade. Novos tempos, novos rumos, idênticos sonhos. Visão utópica em busca de intenção real. Não à resignação. Sim à filosofia. Perigoso quando manipulado por mãos férreas. Dócil quando domado por mãos francas. Patriotismo desmedido e fé... muita fé. Resgatar sua perdida Dulcineia. Resgatar o amor, a vontade. Resgatar a essência, a verdade. Nos campos de batalhas, penetrar as páginas críticas com humor quase mordaz. Nobre herói visionário. Não, não perdeste a razão. Peregrino do ideal, empenhaste-te em mil pelejas. Não manchaste tua alma nobre e pura, enquanto a turba ultriz te apupava senil. Só tu... sonhador.

Salomé Castro in Ubi Veritas

Aurora boreal

PALAVRAS COM ALMA
Tenho quarenta janelas
nas paredes do meu quarto.
Sem vidros nem bambinelas
posso ver através delas
o mundo em que me reparto.
Por uma entra a luz do Sol,
por outra a luz do luar,
por outra a luz das estrelas
que andam no céu a rolar.
Por esta entra a Via Láctea
como um vapor de algodão,
por aquela a luz dos homens,
pela outra a escuridão.
Pela maior entra o espanto,
pela menor a certeza,
pela da frente a beleza
que inunda de canto a canto.
Pela quadrada entra a esperança
de quatro lados iguais,
quatro arestas, quatro vértices,
quatro pontos cardeais.
Pela redonda entra o sonho,
que as vigias são redondas,
e o sonho afaga e embala
à semelhança das ondas.
Por além entra a tristeza,
por aquela entra a saudade,
e o desejo, e a humildade,
e o silêncio, e a surpresa,
e o amor dos homens, e o tédio,
e o medo, e a melancolia,
e essa fome sem remédio
a que se chama poesia,
e a inocência, e a bondade,
e a dor própria, e a dor alheia,
e a paixão que se incendeia,
e a viuvez, e a piedade,
e o grande pássaro branco,
e o grande pássaro negro
que se olham obliquamente,
arrepiados de medo,
todos os risos e choros,
todas as fomes e sedes,
tudo alonga a sua sombra
nas minhas quatro paredes.

Oh janelas do meu quarto,
quem vos pudesse rasgar!
Com tanta janela aberta
falta-me a luz e o ar.
António Gedeão
(1906-1997)